16 Mar 2004

Vale a pena ler


Transcrevo, com a devida vénia, a opinião mais esclarecida que li até agora sobre o terrorismo em Madrid

Tragédia Espanhola Por EDUARDO LOURENÇO
Terça-feira, 16 de Março de 2004

Cultura realista, a espanhola, tem do que lhe é próximo, uma vivência rude, carnal. Para ela o vizinho não é apenas o que mora ao lado. É o burgo que a cerca, a comunidade a que pertence. A gente de Alcalá de Henares viveu colectivamente o horror que atingiu os seus "vizinhos" e com o sentimento desta "vecindad" afinal, a Espanha toda. Só nestes momentos o distraído mundo que fabricámos entra em si mesmo e se transcende. A tragédia espanhola mostrou que os nossos vizinhos não só defrontaram o horror com coragem e dignidade mas com uma determinação e uma eficácia exemplares. Nem na alma nem no espaço devastado o caos pode triunfar. O terrorismo na sua forma mais implacável não terrorisou a Espanha.

Mas fê-la reflectir, menos pela sua mensagem sinistra e vingativa que pela resposta inadequada e quase pavloviana - com justificação num passado conhecido - que se enganou de alvo, atribuindo à ETA o que já vários meios europeus e internacionais julgavam ser de responsabilidade islâmica. Este engano de leitura que era mais do que isso pois não era isento de cálculo político em vésperas de eleições, foi fatal ao governo Aznar. Em menos de quarenta e oito horas, uma opinião em estado de choque, na sua maioria ainda disposta a votar PP, convenceu-se do carácter manipulatório em todo o caso desastrado, do comportamento oficial e decidiu sancioná-lo, num reflexo que terá poucos precedentes. Em termos banalmente emocionais o que ontem aconteceu em Espanha poderá parecer uma injustiça e a uma sanção desproporcionada contra um governo até então creditado de uma boa gestão, arrogante no seu diagnóstico, com uma boa imagem de marca em termos europeus. Em termos políticos e de memória recente, as coisas são mais complexas. Lembremo-nos que a Espanha que por ocasião da tragédia descobre que o seu "carismático" chefe lhe mente é a mesma que por ocasião da até hoje ilegitimada invasão do Iraque, pôs na rua dois milhões de pessoas no mais vasto protesto público do mundo ocidental. Na verdade, o que era estranho é que esse profundo movimento de desaprovação da política exterior de Aznar não tivesse, em termos de sondagens, alterado profundamente as intenções eleitorais. Tudo se passou como se diante da invasão consumada, recolhendo os louros da "vitória" do aliado americano, assumindo em flecha o seu papel de guarda-avançada contra um Terrorismo, descrito e aceite nos termos de G. Bush e a sua administração, a opinião pública espanhola se tivesse resignado à aposta voluntarista, quixotesca (se se pode dizer) de Aznar.

Aposta ganha, ninguém o duvida, se o imprevisível (mas também na ordem do previsível) atentado do 11 de Março, com uma brutalidade rara não viesse alterar todas as perspectivas. Calculado para obter esse efeito desestabilizador, o monstruoso atentado obteve, sem dúvida, mais do que os seus autores podiam imaginar. E do ponto de vista espanhol uma daquelas mudanças políticas que, dadas as circunstâncias, é quase uma revolução. Menos em termos de política interna do que externa, mormente europeia. Discípulo fiel de Blair, sacralizado pelo Congresso americano, Aznar pensava ter alcançado para si e para a Espanha aquele estatuto de "grande" que a Espanha merece e que reclama, mesmo correndo o risco que impavidamente correu, de deslocar a fraca Europa em construção. E quando, com uma aura à Carlos V plebeu estava em vias de abandonar, com a admiração de muita gente, com uma extraordinária carreira politica, o Capitólio Moncloa dos seu sonhos realizados, é precipitado por uma última irrupção dos demónios da História, numa dramática rocha-Torpeia.

Não invertamos as perspectivas. O drama subjectivo de um político com qualidades - entre elas a da coerência e coragem de assumir os valores de que se reclama a Espanha que há muitos anos o elegeu - é pouca coisa ao lado do drama humano, sem glosa mais que a dor e a revolta que inspiram.

O Partido Socialista em nada se deve sentir culpado por ter beneficiado de tão dolorosa causa ocasional da reviravolta do eleitorado espanhol. O desastre político do PP não estaria escrito nos astros. Mas o seu contencioso começava a ser pesado a alguns e nada tinha que ver com o pró-americanismo ostentatório do Governo Aznar, com o caso do Prestige. Que já fora fruto de uma certa concepção desdenhadora, quase autista, do Poder. Aznar não é o primeiro político europeu a que o sucesso, quer na ordem interior, quer exterior, subiu à cabeça. Ainda há apenas quinze dias, em entrevista ao "Monde" leccionava a França culpada a seus olhos de tibieza. Claro que não era este género de atitude, imperialista, digamos, que o desconsiderou aos olhos do espanhol médio. Pelo contrário, residia no anti-francesismo notório da sua política uma das razões da sua aura. O anti-francesismo ou não francesismo faz parte da sensibilidade ou do inconsciente espanhol. Contra-natura foi a sua imoderada paixão pelos Estados Unidos, sobretudo por este sr. Bush, herdeiro do imperialismo americano de que a Espanha colonizadora e o espaço latino-americano foram presa histórica. Nem Franco morria de amores pela Grande Nação. Convenceu-o o seu mau génio Blair que juntando-se ao senhor do mundo poria a Europa a seus pés?

Se foi o caso, o sonho faliu. E não é mau que tenha falido como outros menos ostentatórios mas na mesma linha.

A Espanha de Aznar foi punida no lugar de Bush e quando isso se tornou claro no espírito dos espanhóis, o destino do anti-carismático e bem sucedido líder da direita espanhola estava decidido.

Ainda é cedo para avaliar as consequências deste 11 de Março, logo glosado pelos nossos pró-americanos de serviço como um outro 11 de Setembro. Não é um novo 11 de Setembro na Europa. É justamente o contrário. E cabe agora ao PS espanhol demonstrá-lo. E para além dele à Europa, a uma Europa que não deve entrar em pânico com estes novos "seldjucidas" dentro dos seus muros, mas mobilizar-se e mobilizar o mundo para o único combate oposto ao da guerra infinita absurda e apocalipticamente imaginada pelos Bush, Rumsfeld e os seus conselheiros: o combate pela Paz. A começar pela paz no Médio Oriente. Lugar infernal de que o horror de Madrid é só a visível e monstruosa consequência.

Vence, 14 de Março


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