O crédito é uma coisa curiosa. Os excessos são sempre identificados depois de as crises acontecerem e, na generalidade dos casos, exibidos como culpa do comportamento irresponsável de quem viveu com os meios que não tinha. Ora, há aqui duas coisas que têm necessariamente de ser pensadas e ditas. 1) devia ser difícil entender a irresponsabilidade de quem pede o crédito sem a conjugar com a irresponsabilidade de quem o concede; e 2) a avaliação da capacidade creditícia (por parte dos dois agentes) é altamente dependente da confiança dos agentes económicos.
Nenhum crédito é viável numa economia em - pelo menos risco de - espiral recessiva. Nem um. O problema mais grave da narrativa que define o que generosamente podemos apelidar de política económica e financeira deste governo é exactamente este ponto. Ainda recentemente fomos brindados com declarações governamentais dizendo que a quebra de actividade económica e os níveis insustentáveis de desemprego que temos vindo a sofrer eram, afinal, boas notícias. Que as empresas que vão à falência todos os dias são más, uma espécie de toxinas de que Portugal faz bem em livrar-se, e quanto mais depressa melhor. Por arrasto, calculo, podemos supor que o desemprego gerado por essas falências é também composto por gente de fraca qualidade, uns improdutivos a quem este merecido castigo poderá ajudar a repensar a forma errada como têm levado as suas vidas.
Neste tipo de discurso misturam-se várias coisas, qual delas a pior. Em primeiro lugar, uma crença imensa na meritocracia, vinda invariavelmente de quem, tendo tido algum sucesso, o atribui apenas às suas capacidades desprezando totalmente as próprias condições de partida e o impacto que a sorte, ou o acaso, desempenha no percurso de cada um. Claro que isto implica, por exemplo, ver quem está desempregado, ou numa situação de pobreza, como alguém que, no fundo, apenas não se esforça o suficiente. Em segundo lugar, uma visão arcaica e profundamente classista da sociedade: quem manda os "mais modestos", que tinham uma vida "simples, mas honrada", quererem mais? Finalmente, uma fé inabalável que o sofrimento não é algo apenas necessário, mas desejável. Uma purga redentora, que se encarregará de criar um novo Portugal.
Ou seja, laissez-faire misturado com imobilismo e crença numa qualquer redenção moral. Parece alucinado? Sim, e é mesmo isto que nos governa.
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