24 Jun 2013

FED e zona euro

Depois da recente conferência de imprensa da Reserva Federal, não vejo ninguém discutir as consequências para a Europa do fim anunciado do programa de quantitative easing. Uma das formas de combater uma crise de dívida é através do que se chama "repressão financeira". Um mecanismo caracterizado por manter o nível da curva de taxas de juro artificialmente baixo, fazendo assim uma transferência de riqueza dos credores para os devedores.

As políticas extraordinárias da Reserva Federal não tinham como destinatário a Europa. No entanto, esta região beneficiou amplamente do que foi feito, como aliás foi visível no nível historicamente baixo que as taxas de juro dos países core da zona euro atingiram durante os últimos meses. Estas taxas de juro artificialmente baixas permitiram a estes países beneficiar do programa de quantitative easing, permitindo às autoridades alemãs colher os frutos sem ter de sujar as mãos, ao mesmo tempo que continuava a rasgar as vestes sempre que alguém na Europa sugeria que o BCE deveria estar a fazer a mesmíssima coisa.

Com a economia norte-americana aparentemente no bom caminho (desemprego em queda, mercado imobiliário em recuperação, défice orçamental em contracção superior às melhores expectativas, um PIB cuja discussão é se está a crescer a 2% ou 3% ao ano), é apenas natural que a FED inicie a sua estratégia de saída. O que são, claro, péssimas notícias para a Europa. Já, aliás, bem visíveis na subida considerável das taxas de juro em todos os países europeus.

Tentando resumir: a zona euro tem um banco central que está, na prática, proibido de realizar expansões da massa monetária; um conjunto de governos que assinou um pacto orçamental, que implica austeridade para todos - em diferentes graus, mas para todos - durante os próximos largos anos; uma economia privada ainda demasiado alavancada que, em muitos casos, nem sequer iniciou o necessário processo de menor utilização de crédito; um sistema financeiro mais capitalizado, mas ainda muito dependente do que será o andamento da economia. Um belo cocktail, portanto.

Sem o analgésico da FED, receio bem que venhamos a descobrir bem depressa que os elogios que toda a gente andou a fazer a Mario Draghi em 2012, devessem ter ido, não para este, mas sim para Ben Bernanke. Até à semana passada.

21 Jun 2013

Frases

"Sonhar sem pensar em concretizar sabe-me a autoengano."

Carlos Vaz Marques, Revista Expresso, 2013.06.15

20 Jun 2013

Limite

É dos livros de história que as crises económicas são mais severas quando provocadas por uma crise financeira. Quando juntamos a isto uma Europa que escolheu, e continua a escolher, não ter os instrumentos adequados para lidar com uma crise desta dimensão, não é difícil perceber porque é que o continente europeu está mergulhado na segunda recessão desde 2008.

Ainda assim, há uma enorme diferença entre a periferia e o centro da zona euro. As economias periféricas, reféns de atrasos crónicos com causas estruturais que não se revertem em décadas, quanto mais em anos, têm como única receita dada pelos seus credores (e aplicada entusiasticamente por governos como o nosso), empobrecerem. E quanto mais rápido, melhor.

Acontece que isto implica, como temos visto em Portugal, muitas coisas que só um estado de anestesia geral permite que aconteçam. Desde atropelos consecutivos à constituição, ao ataque cerrado às franjas mais desprotegidas da sociedade (como no caso do complemento solidário para idosos ou o RSI), ou à tentativa deliberada de colocar grupos uns contra os outros (funcionários pública e pensionistas). Exemplos aos quais podemos juntar uma dose de incompetência na gestão do país que ultrapassa as expectativas mais pessimistas.

Quando se coloca tudo em causa, excepto o dever de pagar as dívidas aos nossos credores, aumenta-se seriamente a probabilidade de, mais tarde ou mais cedo, decidirmos, simplesmente, não pagar. Não perceber isto, que o necessário processo de ajustamento tem de ser feito com bom senso, é trágico. Um dia destes, arriscamo-nos mesmo a descobrir qual é o limite para os sacrifícios.

19 Jun 2013

Para onde foi o bom senso?

Esta sensação estranha de o bom senso ter desaparecido de circulação paralisa, quando devia fazer o oposto. 

Temos o lado que argumenta ser este o único caminho, mesmo que não se descortine um rumo que não seja apenas a destruição de tudo o que cheire a serviço público ou proteção básica aos desfavorecidos. Uma mistura perigosa de fé num tal de mercado utópico que encontra, no desejo de desregulamentação e selvajaria, os desejos de vingança de uma direita que nunca perdoou nada do que foi conquistado pelos portugueses em democracia. 

Do lado oposto também encontro o medo. Desde as proclamações de independência nacional, advogando o abandono imediato do euro, como se esse não fosse um passo suicida na sociedade actual portuguesa, à exigência de rasgar tudo o que são os acordos que livremente assinámos, sem explicar que modelo de financiamento - e sobrevivência - defendem para para o país. 

O comum destes dois lados é ser impossível dialogar com qualquer um deles. A razoabilidade que é necessária para o fazer tem vindo a ser cada vez mais minada, muito pela actuação de um governo que, convencido de possuir uma qualquer missão salvífica, continua a alienar, um a um, vários sectores da sociedade portuguesa. 

Teremos de ser nós a por cobro a isto. Ou, não tarda muito, qualquer réstia de bom senso vai soçobrar ao fanatismo que domina actualmente o discurso público. 

14 Jun 2013

João

Conheci o João Pinto e Castro, de uma forma mais superficial do que gostaria. Estivemos juntos em dois blogues, o Sim no Referendo em 2007 e agora no Jugular, e encontrámo-nos umas 5 vezes, creio, entre jantares desses mesmos blogues e coisas assim. Mas eu conhecia-o há mais tempo. Li o "blogo existo" desde o seu início e ri, inquientei-me e aprendi muito com as suas palavras desde então. 

Tinha um cuidado enorme sempre que falava com ele, nessas ocasiões ou no twitter. Conhecia bem a sua inteligência, velocidade de raciocínio e capacidade de pensar de uma forma diferente e nunca consegui abandonar a timidez e o receio de dizer alguma coisa irremediavelmente estúpida. 

Morreu hoje. Vai fazer falta. Fica aqui o abraço que não fui capaz de lhe dar.

6 Jun 2013

I'm only happy when it rains

O sentimento dos mercados não precisa de muito para mudar, já o sabemos. Numa Europa em recessão, presa por uma ortodoxia transformada em lei pelo pacto orçamental, era mais do que óbvio que alguma coisa tem de mudar para que o estado de bovinidade visto nos mercados de dívida soberana tivesse alguma sustentabilidade. Ou seja, os analgésicos do BCE (LTRO, OMT) funcionam, aliviam, mas não resolvem. Aliás, no caso europeu tendem a ser perversos, ao diminuírem a urgência das alterações estruturais na União (mutualização, reforço das capacidades do BCE, entre outras), essenciais à sua sobrevivência.

Hoje Draghi, ao mesmo tempo que se comprometia a manter políticas monetárias convencionais acomodatícias pelo tempo que for necessário (com muito pouca utilidade nesta fase), surpreendeu ao criticar abertamente a posição da comissão europeia em flexibilizar as metas de défice orçamental de vários países. Ora, isto mostra que, mesmo depois dos falhanços sucessivos de um foco exclusivo nas políticas orçamentais restritivas, continuamos a não entender nem as causas desta crise, nem os efeitos nocivos da resposta que tivemos até agora.

Curiosamente, a esperança reside nos mercados financeiros. Confrontados com uma Europa que insiste em não perceber que está a condenar a dívida soberana de vários dos seus membros a uma insustentabilidade certa, começam a acordar para os riscos que aí vêm.

Dado que o sofrimento das populações não é especialmente interessante (sendo até motivo de orgulho para governantes como o nosso primeiro-ministro), pode ser que uma desvalorização nos mercados de dívida soberana (até pelo impactos que gerará no sistema financeiro) faça acordar os líderes europeus deste pesadelo a que insistem em condenar-nos. Venha a chuva.


Dois anos disto (II)

Passos Coelho conseguiu ontem fazer o melhor balanço destes dois anos do seu governo em apenas uma frase: "tenho muito orgulho no trabalho que estou a fazer". Quem ainda achava que o desastre económico e social em que estamos mergulhados não é uma consequência desejada pelo primeiro-ministro, acabou de ficar definitivamente esclarecido.

5 Jun 2013

Fragmentação

Fragmentação tem sido um termo utilizado para descrever os mercados de dívida europeus. Não apenas de dívida soberana, mas também do mercado de dívida das empresas, cuja correlação se mantém elevada desde a crise. Há cerca de um mês assistimos, como se nada fosse, a Portugal emitir dívida a um ano ao mesmo nível de taxa de juro que a Alemanha o fez, mas a 10 anos. A situação nas empresas é semelhante. Num mercado comum, as empresas portuguesas de média dimensão - as tais que têm de exportar muito - pagam spreads bárbaros (quando conseguem crédito) em comparação com as empresas que não estão sediadas na periferia europeia. 

Ora, esta fragmentação é insustentável e é uma das razões que impede, como hoje começa a ser consensual, qualquer esforço de consolidação que, melhor ou pior - infelizmente, no nosso caso, pior -, seja feito pelo governo. 

Mas fragmentação é também uma excelente palavra para descrever a acção deste governo, que saiu das eleições realizadas há dois anos. Desde o início, toda a sua actuação foi baseada, tanto no mal disfarçado ressentimento em relação a tudo o que é público, como na exploração do ressentimento para tentar ganhar apoio às medidas que foram introduzindo. A dicotomia público / privado, através da repetição da mentira de tudo ser um desperdício no Estado, é um exemplo. A exploração até à náusea da suposta guerra intra-geracional é outro. A contínua desvalorização das causas estruturais do desemprego - insistindo na tecla de que qualquer desempregado apenas o é porque o quer (incluindo inacreditáveis apelos à emigração), ainda outro. 

Este é, talvez, o legado mais pesado que este governo deixará ao país. Quem agora fala de consensos fez muito para os destruir durante estes dois anos. Quem vier a seguir não só terá de ter a capacidade de inverter este rumo desastroso, como terá de o fazer num contexto de uma sociedade portuguesa cada vez mais fragmentada.

Impressões

Não há uma segunda chance de causar uma boa primeira impressão, dizem. Não dizem é que, sem substância, a primeira impressão é apenas uma forma de enganar bem.

Dois anos disto

Dois anos depois deste governo ser eleito, a surpresa não é o ataque continuado ao Estado Social. Esse ataque, apesar da campanha eleitoral em contrário, era bastante óbvio. A surpresa é terem falhado tudo - mas mesmo tudo - o resto.

É isto

"É preciso viver como se a existência fizesse sentido, construindo uma realidade cujos valores possam afirmar até mesmo a falta de sentido: como quem diz «vale a pena», apesar do trágico.
(...)
O que se deve buscar é um saber que se afaste da verdade, lá onde ela é mortal - foda-se a verdade -, e se dedique a construir formas, ideias, afectos, técnicas que nos ajudem a afirmar a vida. Isso é uma decisão de princípio."

Francisco Bosco, Alta Ajuda, Tinta da China edições, pág.118.

Arte do desassombro


Francisco Bosco, Alta Ajuda, Tinta da China edições, pág. 49